O mando está escancarado nas paredes dos imóveis de diversas comunidades. Já nas primeiras ruas do bairro Barroso, uma comerciante conta: "um bocado de gente já saiu daqui da noite para o dia". Com a condição de não ser identificada, a mulher recomenda à reportagem "tomar cuidado com quem falar e por onde ir", deixando claro que os vigilantes das facções se espalham pela região.
A poucos metros, um jovem arregimentado pela criminalidade acompanha os passos da equipe e sinaliza aos comparsas a chegada dos "estranhos". Do outro lado da via, uma composição da Polícia Militar se concentra em um posto fixo que, conforme moradores, foi instalado há pouco meses, na intenção de evitar novas expulsões.
Entre as vielas do bairro, há dezenas de imóveis com placas de ´vendo ou alugo´. De acordo com um homem que reside no bairro há 29 anos, a saída em massa dos seus vizinhos não tem outra explicação a não ser o medo de ser mais uma vítima da disputa de território entre organizações criminosas rivais.
Enquanto falava, o entrevistado, que também não quer ter seu nome revelado, pintava o muro de uma residência pichada por membros da facção Guardiões do Estado (GDE), no início de 2018, quando houve uma das maiores sequências de expulsões no Ceará. Após olhar se não havia "gaviões" ouvindo a conversa, ele revelou que foi uma dessas pessoas retiradas a força do seu próprio lar.
"Eu voltava do serviço e soube do alvoroço aqui. Cheguei e disseram: ´Celim mandou sair´. Carreguei minhas coisas para a casa do meu filho. Tudo isso aqui ficou parecendo um deserto. Agora, por mim mesmo decidi voltar. Se a Polícia continuar aqui, acho que vai dar tudo certo. Mas tenho medo de passar as eleições e eles irem embora", revelou o morador.
´Celim´ mencionado é Auricélio Sousa Freitas, um dos fundadores e líderes da GDE. Há pouco mais de um mês, ele foi preso enquanto trafegava em um veículo de luxo e blindado. Dentre os crimes pelos quais ele é suspeito, estão as expulsões de dezenas de famílias.
Além de ´Celim´, a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) contabiliza outros 21 suspeitos capturados por envolvimento direto ou indireto nestas ações criminosas. Destes, 19 foram detidos apenas na região do Grande Jangurussu.
Extensão do problema
Comunidades de outras regiões padecem de igual problema. Conforme dados concedidos pela Defensoria Pública do Ceará, nos últimos 12 meses, 131 famílias procuraram o órgão após receberem ordens para sair de casa. O levantamento aponta que pelo menos 524 pessoas foram impactadas pelo poder das facções. No bairro Prefeito José Walter, em frente ao Residencial Cidade Jardim I, outra base da PMCE foi instalada devido aos despejos irregulares.
Quando questionado acerca de como era realizado o patrulhamento no espaço, um militar que atua na região relatou que a Polícia trabalha até onde a facção permite. "Se for tirar foto das pichações, tirem de dentro do carro. E se ouvir barulho da bala, se abaixem", sugeriu.
Os moradores pensam semelhante. "A Polícia pode até ficar 24 horas por aqui. Mas quando eles (criminosos) querem, não tem quem segure". No Jangurussu, Conjunto Palmeiras e Boa Vista, o cenário se repete. Edifícios estampam siglas das organizações e servem como delimitação do ir e vir.
"Eu não tenho nada a ver com facção. Mas como é que eu posso impedir se meu sobrinho se meteu em uma dessas? Não posso mais ir para o outro lado do bairro, que já me juram de morte. Eles estão espalhados em todos os cantos", comentou um morador do bairro Boa Vista.
Garantias
Em junho deste ano, o Ministério Público do Ceará (MPCE) e o Ministério Público Federal (MPF) entraram com uma Ação Civil Pública para cobrar a reintegração de posse dos imóveis das famílias expulsas no Jangurussu. Na semana passada, o promotor Eneas Romero de Vasconcelos, que atua diretamente na garantia da retomada das propriedades, afirmou que nada foi decidido ainda. Segundo ele, há duas vias de trabalho do MPCE: uma voltada para os direitos humanos e outra, para o combate específico ao crime organizado.
"O Estado tem que se fazer presente desde identificar essas situações até garantir políticas públicas. Uma vez retomado o território, a família precisa ser reinclusa com acompanhamento da Polícia e por parte dos direitos humanos", afirmou o promotor de Justiça.
Na intenção de auxiliar as vítimas expulsas, o Ministério Público Estadual esclarece que trabalha com inclusões em programas sociais. Eneas Romero acrescenta que as vítimas devem procurar pelos órgãos públicos para garantir seus direitos.
"Muitas pessoas são expulsas e não sabem como agir. Elas foram vítimas de criminosos, mas têm o Estado a recorrer. Acontece também de o dono do imóvel não ter nenhuma relação com facção. Às vezes ele é culpado por ter um sobrinho faccionado. Nosso objetivo é, mesmo com tudo isso, fazer uma política pública articulada", explica o promotor.
Por nota, a Defensoria Pública do Estado destacou que as famílias que estiverem em situação semelhante podem procurar a assistência jurídica no Núcleo de Habitação e Moradia (Nuham), localizado no bairro Luciano Cavalcante, em Fortaleza. O atendimento do órgão é gratuito.
SSPDS planeja unificar dados dos despejos
A investigação das expulsões pelo crime organizado esbarra na ausência de tipologias criminais específicas. Apesar das recorrentes notícias a respeito das retiradas forçadas de moradores das suas residências, não há dados concretos sobre a quantidade de vítimas em Fortaleza.
A Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) explicou que não há estatística para contabilizar as expulsões. Os casos registrados na Polícia Civil podem ser enquadrados em diversos crimes previstos no Código Penal Brasileiro (CPB), como ameaça, constrangimento ilegal, violação de domicílio ou até mesmo extorsão.
A Pasta informou ainda que, com objetivo de unificar os dados, está sendo trabalhada a criação de um índice para o crime, para incluir no Sistema de Informações Policiais (SIP). Porém, não foi prometida data para essa unificação acontecer.
Estratégia
A fim de combater expulsões e outros crimes, a SSPDS ressaltou que expandiu o projeto de policiamento 24 horas em pontos estratégicos das periferias de Fortaleza, com atenção especial para os conjuntos habitacionais alvos dos grupos criminosos.
Por nota, a Secretaria informou que, atualmente, as ocupações policiais estão situadas nas comunidades do Jardim Castelão II (Babilônia), Novo Perimetral (Gereba), Jagatá, Alameda das Palmeiras, Maria Tomásia, Residencial José Euclides Ferreira Gomes, Residencial Cidade Jardim (José Walter), Lagamar, Sossego (bairro Quintino Cunha), no entorno da Lagoa do Urubu (que compreende os bairros Álvaro Weyne, Floresta e Padre Andrade); e nos bairros Alto da Balança, Vila Velha, Praia de Iracema e Dionísio Torres.
A intenção é ampliar a iniciativa para outras comunidades da Capital e Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), segundo a Pasta. Outra promessa é transformar cada unidade em base integrada de policiamento, com o complemento de ações das demais Forças de Segurança.
Fique por dentro
Portaria garante realocação
Há pouco mais de um ano, foi publicado no Diário Oficial da União que o "impedimento de ocupação ou retirada da unidade habitacional por invasão ou ameaça" é passível de rescisão contratual. Pouco difundido entre a população, o documento de 19 de julho de 2017 trata do direito a realocação.
Conforme o promotor de Justiça Eneas Romero de Vasconcelos, as vítimas expulsas das suas casas por criminosos devem, primeiro, prestar um Boletim de Ocorrência para garantir o benefício. Caso o despejo tenha sido comandado por facções criminosas, o promotor indica que o B.O. Seja feito na Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco).
"Depois de prestar o Boletim, a vítima tem que pegar uma declaração junto ao órgão estatal que solicitou a demanda pelo imóvel. E informa oficialmente que foi expulsa. Com isso, é feito um distrato e essa vítima tem direito a ser realocada", disse Romero.
O promotor explicou que, após o destrato contratual, não há prazo específico para receber o novo imóvel, porque isso depende da disponibilidade das residências. Romero destacou que, em alguns casos, é discutida na Justiça a chance de um aluguel social.
Fonte: Diário do Nordeste